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Informalidade urbana nas favelas: peça do sistema, não falha

O regime urbano se sustenta na instabilidade, precariedade, desigualdade e violência (Foto: Dany13/Flickr)

A informalidade não é falha, ausência ou efeito do desenvolvimento urbano, mas elemento central do regime urbano nos países do Sul Global

POR RAFAEL ALMEIDA, MARIANNA MOREIRA E MATHEUS GRANDI

Desde o início do século XX, quando o termo favela passou a designar genericamente áreas populares de ocupação no Rio de Janeiro, esses espaços, segundo Maurício Abreu, foram associados à ilegalidade e à marginalidade. O tema da “invasão” atravessa a história da cidade, das narrativas de fugitivos, soldados e libertos que subiram os morros até os relatos épicos da migração rural-urbana.

A partir da segunda metade do século XX, porém, estudiosas e estudiosos do espaço urbano passaram a questionar essa leitura. Argumentaram que a cidade autoconstruída não era uma anomalia, mas parte das origens do urbanismo íbero-americano.

No debate internacional, sobretudo sobre o Sul Global, é comum pesquisadores tratarem a informalidade como fenômeno espontâneo, reflexo da incapacidade histórica dos Estados em formalizar atividades e habitação de amplos segmentos da população. Essa visão supõe que a urbanização “incompleta” resultaria de falhas ou omissões estatais.

Contudo, a maioria dos estudiosos do século passado – independentemente de abordarem o tema a partir da teoria da modernização, da marginalidade ou da dependência – considerou a informalidade urbana como externalidade não intencional do desenvolvimento.

Revista ESG Insights - Edição 2 - Cidades e sustentabilidade

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Cidades e sustentabilidade

Informalidade, conflito social e responsabilidade estatal nas favelas

Nós, do Grupo de Pesquisas e Extensão sobre Culturas, Políticas e Geografias Marginais (Margear) e do Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão sobre Corpos e Espaços Periféricos (Peri), ambos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, entendemos de outra forma: a informalidade não está fora das estruturas do Estado, mas integra suas práticas territoriais.

A pesquisa sobre o que é favela, de Maria Laís Pereira da Silva, publicada no Observatório de Favelas, reforça esse argumento. Cerca de 40% das favelas construídas antes de 1964 surgiram com algum tipo de autorização prévia: de proprietários, grileiros ou, no caso de terrenos públicos, de funcionários estatais.

Esse dado histórico revela que o Estado nunca esteve ausente, mas atuou de maneira seletiva, utilizando a informalidade como ferramenta de planejamento urbano. Com isso, ao mesmo tempo, desresponsabilizou-se de prover direitos plenos aos moradores das favelas.

A regulação das atividades

Com o crescimento das favelas, atividades públicas e privadas passaram a demandar regulação. O problema era que o estatuto jurídico desses territórios os mantinha na ilegalidade. Como o Estado poderia fiscalizar sem correr o risco de legitimar?

Segundo estudos, a resposta veio por meio de licenças precárias e pela institucionalização de associações de moradores como unidades de representação.

Um exemplo é o Decreto nº 1.668, de 8 de maio de 1963, que regulava o comércio em favelas. O texto reconhecia que lojas e serviços funcionavam “à revelia” das normas. Por isso, o Estado optava por não fiscalizar, temendo legitimar práticas irregulares – embora esses estabelecimentos atendessem a milhares de pessoas e competissem com o comércio formal sem pagar os mesmos impostos.

Esse quadro não é exclusivo do Brasil. No mundo inteiro, a informalidade não é um sinal de atraso ou um resquício de algum desenvolvimento inacabado, mas parte constitutiva da modernidade.

Ela não existe fora da regulação institucionalizada. Não é “extralegal” nem “paralegal”. Ao contrário: está no coração do Estado e constitui suas práticas territoriais.

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Fronteiras maleáveis

Se a informalidade é parte do Estado, cabe a ele classificá-la, regulá-la e distribuí-la de forma seletiva e arbitrária. Como observaram os pesquisadores Rafael Gonçalves, Nicolas Bautès e Maria Maneiro, as fronteiras entre o formal e o informal são maleáveis e ligadas ao poder estatal e às disputas sociais que o atravessam.

Por isso, os espaços informais devem ser entendidos como efeito do Estado, como resultado de seu “fazer e refazer”. O planejamento urbano usa essa ambiguidade como uma ferramenta que lhe garante flexibilidade. Ao mesmo tempo em que valoriza e regulariza certas formas de informalidade, marginaliza e criminaliza outras.

Nesse sentido, a urbanista indiana Ananya Roy, professora titular da Cátedra em Desigualdades e Democracia da Universidade da Califórnia, aponta que a informalidade urbana não é simples ausência de regras, mas um idioma da urbanização utilizado pelo Estado para governar a cidade. Trata-se de um verdadeiro modo de produção do espaço que permite ao Estado gerenciar – e não solucionar – as desigualdades.

A favela como exceção

A partir da década de 1930, a favela foi juridicamente integrada como exceção. Essa condição permitiu o funcionamento de mecanismos de controle específicos sobre territórios e moradores.

O resultado foi que parte significativa do Rio de Janeiro passou a ser considerada “cidade informal”. Isso decorreu de um complexo aparato normativo que tornou ilegal uma parcela inteira do tecido urbano.

Assim, estabeleceu-se um estatuto jurídico excepcional, que submeteu as favelas e seus habitantes a uma condição de “provisoriedade permanente”.

Essa incerteza jurídica é mantida como forma de governo, já que permite ao Estado atuar de forma específica sobre esses espaços. A favela, portanto, não é efeito indesejado de políticas insuficientes nem subproduto de um desenvolvimento incompleto, mas espaço historicamente construído para circunscrever um campo de governo.

O poder estatal deriva justamente de técnicas regulatórias que mantêm constante a negociabilidade dos direitos à terra, ao uso e ao reconhecimento formal da propriedade.

As ambiguidades e contradições normativas do Estado conferem flexibilidade às suas ações, frequentemente consideradas ao mesmo tempo legais e ilegais. Essa elasticidade permite configurar, de modo calculado, as fronteiras entre formalidade e informalidade.

Assim, o regime urbano se sustenta na instabilidade, precariedade, desigualdade e violência. A informalidade não é falha, ausência ou efeito colateral do desenvolvimento urbano. Também não está fora do planejamento, nem é mera consequência de sua falta.

Ela é, sim, elemento central do regime urbano nos países do Sul Global. Uma chave para compreender a responsabilidade estatal na produção e gestão das favelas.

Rafael Almeida – Professor adjunto do Departamento de Geografia Humana do Instituto de Geografia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Marianna Moreira – Professora adjunta do Departamento de Geografia Humana, do Instituto de Geografia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Matheus Grandi – Professor associado do Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de Professores, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Este texto foi republicado de The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original.

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Este estudo é financiado pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). A publicação desta pesquisa contou com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

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Foto: Dany13/Flickr
O regime urbano se sustenta na instabilidade, precariedade, desigualdade e violência

 

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