A descentralização da geração elétrica pode transformar bairros em protagonistas da transição energética – com mais educação, engajamento e justiça territorial
POR ALEXANDRE BELUCO
No fim da tarde, a quadra da escola pública começa a se encher. Não é dia de reunião pedagógica nem de festa junina – é o encontro mensal da comunidade para discutir o consumo de energia do bairro. Na parede da escola, um painel digital mostra os dados de geração solar dos últimos trinta dias.
Alunos do 9º ano explicam como funciona o sistema fotovoltaico instalado no telhado, enquanto moradores comentam sobre a redução na conta de luz e a ideia de expandir o projeto para o posto de saúde. Ali, entre cadeiras de plástico e cadernos rabiscados, a energia deixou de ser invisível. Ela virou assunto de conversa, de aprendizado, de decisão coletiva. Ela mora ali: na vizinhança.
Essa cena, embora pareça excepcional, aponta para um caminho possível e necessário: a energia como parte da vida cotidiana, acessível, compreensível e compartilhada. Em um país onde o sistema elétrico ainda é percebido como distante e técnico, iniciativas locais de geração distribuída – como cooperativas solares, escolas com sistemas fotovoltaicos e comunidades energéticas – revelam que a transição energética pode ser vivida no território.
Descentralização energética: caminho vital
Quando a energia “mora na vizinhança”, ela deixa de ser um serviço invisível e passa a ser um instrumento de educação, cidadania e decisão coletiva. Este artigo propõe olhar para essa transformação: como a descentralização da geração elétrica pode impulsionar uma transição energética mais justa, participativa e enraizada nos vínculos locais.
A transição energética não depende apenas de infraestrutura ou inovação tecnológica – ela exige compreensão, engajamento e mudança de comportamento. E isso começa pela educação (e pode ter instituições públicas de ensino servindo como exemplo). Ensinar o uso racional da energia é formar cidadãos capazes de tomar decisões conscientes sobre consumo, sustentabilidade e justiça social.
Projetos como Procel Educação, da Eletrobras, e Energia que Transforma, do Instituto Ideal, mostraram que escolas públicas podem ser espaços estratégicos para essa formação.
Quando alunos aprendem sobre eficiência energética, fontes renováveis e impactos ambientais, eles não apenas mudam hábitos – eles influenciam suas famílias, seus bairros e suas comunidades. A energia, nesse contexto, deixa de ser um conceito abstrato (e se afasta também de interpretações míticas) e passa a ser parte da vida cotidiana. É nesse encontro entre conhecimento e território que se constrói uma “cidadania energética”: ativa, crítica e comprometida com o futuro.
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Cidades e sustentabilidade
Cooperativas e comunidades
A descentralização da geração elétrica – por meio de sistemas fotovoltaicos, cooperativas solares e comunidades energéticas, entre outras possibilidades, – não é apenas uma inovação técnica. Ela é, sobretudo, uma oportunidade de transformar a relação das pessoas com a energia. Quando bairros, escolas e associações locais passam a gerar e gerenciar sua própria eletricidade, o sistema deixa de ser opaco e distante. Ele se torna visível, compreensível e, acima de tudo, compartilhado.
Essa proximidade cria espaço para o aprendizado: alunos que monitoram o consumo da escola, moradores que discutem eficiência energética em assembleias, vizinhos que decidem juntos sobre investimentos em infraestrutura. Mas também cria espaço para a política – no sentido mais profundo da palavra. A energia, nesse contexto, vira assunto público. E a descentralização se revela como uma ferramenta de formação cidadã, capaz de fortalecer vínculos, ampliar o protagonismo local e democratizar decisões que antes estavam restritas a poucos.
O próprio Plano Nacional de Energia 2055, elaborado pela EPE, aponta que o crescimento dos recursos energéticos distribuídos e o engajamento do consumidor serão pilares da transição energética brasileira – exigindo novas formas de planejamento, participação e educação. Na União Europeia, iniciativas de autoconsumo coletivo, apoiadas por marcos regulatórios claros, ampliaram o engajamento dos cidadãos e fortaleceram práticas de cidadania ativa, gerando ganhos tanto na eficiência do sistema quanto na coesão comunitária.
Apenas para lembrar: o sucesso das fontes renováveis não depende apenas da geração, mas da forma como consumimos, compartilhamos e compreendemos a energia. Diferente das usinas centralizadas e dos modelos convencionais, as fontes renováveis – especialmente solar e eólica – são intermitentes, distribuídas e sensíveis ao comportamento dos usuários.
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Por isso, quanto mais próximo o consumidor estiver da lógica do sistema, maior será sua capacidade de contribuir para o equilíbrio e a eficiência. A descentralização, nesse sentido, não é só uma questão técnica: ela é pedagógica. Ao popularizar conceitos como geração distribuída, prosumidor, eficiência energética e comunidades energéticas, criamos condições para que a sociedade participe ativamente da transição. É no consumo consciente, na gestão local e na apropriação dos saberes energéticos que as energias renováveis encontram sua verdadeira potência. (Nesse panorama, a complementaridade entre os recursos energéticos pode ser uma importante ferramenta!) E é nesse território – o da vizinhança – que a mudança começa a fazer sentido.
Bons exemplos de energia solar vindos do interior
Em Icaraí de Minas (MG), um projeto de microgeração solar comunitária em condomínios populares mostrou que é possível reduzir significativamente a conta de luz de famílias de baixa renda. A instalação de sistemas fotovoltaicos, articulada com ações de educação energética, transformou o cotidiano dos moradores e criou um senso de pertencimento em torno da energia.
Já em Palmas (TO), a adoção de ônibus elétricos em linhas específicas revelou que mesmo em regiões com clima quente e infraestrutura limitada, a inovação energética pode ser viável e adaptada ao território. Em escolas públicas de diferentes estados, sistemas solares têm sido usados como ferramenta pedagógica: alunos monitoram a geração, discutem consumo e aprendem sobre sustentabilidade de forma prática. Cooperativas solares, por sua vez, têm promovido inclusão energética em comunidades rurais e urbanas, mostrando que a descentralização pode ser também um instrumento de justiça social e protagonismo local. São exemplos que provam: a energia já mora na vizinhança.
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A transição energética não será bem-sucedida se for apenas técnica, centralizada ou imposta de cima para baixo. Ela precisa ser vivida, ensinada e decidida nos territórios. Precisa morar na vizinhança. Quando a energia é gerada localmente, discutida em assembleias, ensinada nas escolas e compartilhada entre vizinhos, ela deixa de ser invisível. Torna-se parte da cultura, da política e da identidade de uma comunidade.
A descentralização não é apenas uma solução para o sistema elétrico – é uma oportunidade de fortalecer vínculos, ampliar o protagonismo social e construir uma cidadania energética. O Brasil tem sol, vento e criatividade de sobra. Mas o que pode realmente acelerar a transição é a capacidade de transformar bairros em centros vivos de decisão, aprendizado e cuidado. Porque no fim das contas, a transição será mesmo feita por pessoas.
Alexandre Beluco – Professor titular na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Este texto foi republicado de The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original.
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