Com recursos para investir, Belém optou por obras que deixam de lado mudanças que poderiam diminuir a desigualdade social
POR BRUNO VIEIRA
“Região Norte
Ferida aberta pelo progresso
Sugada pelos sulistas
E amputada pela consciência nacional”
O verso acima trata-se de um pequeno fragmento da música “Belém, Pará, Brasil”, da extinta banda Mosaico de Ravena, que fez muito sucesso em Belém, na década de 80.
Quando convidado para escrever sobre a COP 30 em Belém, o meu ethos amazônida, fruto do nascimento e vivência na região, sentiu-se compelido a expor com maior alcance sobre quem somos e o que desejamos para essa cidade-metrópole, com cultura e culinária riquíssimas, porém pródiga em problemas urbanos de diferentes espécies.
Há quase dois anos, o plenário da COP 28 decidiu que em 2025 a cidade-sede da Conferência do Clima seria Belém. A capital do Pará enfrenta problemas que geram e agravam a latente injustiça socioespacial e climática da cidade: na coleta e tratamento de resíduos, saneamento básico, mobilidade, segregação urbana, baixo índice de arborização, entre outros.
Com seus 1.303.403 habitantes, Belém exibe desigualdade em cada esquina, e mais da metade da população reside em favelas ou comunidades urbanas, de acordo com os dados do Censo. A metrópole, que tem o título de “cidade das mangueiras”, tem um baixíssimo índice de arborização e uma temperatura que aumentou quase 2 graus centígrados nos últimos 50 anos. E isso em plena Floresta Amazônica.
Obras para quem?
Desde o primeiro momento do anúncio, criou-se uma espécie de aliança oficiosa entre os gestores das três esferas da República (presidente, governador e prefeito) em favor da realização da COP 30 em Belém. Isso tem gerado uma transferência volumosa de recursos públicos para custeio de obras de infraestrutura na cidade.
A definição sobre quais seriam estas obras, no entanto, em nenhum momento foi levada a algum fórum sério de deliberação democrática. Essa prática que agride fortemente as diretrizes da política urbana contidas no Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), que determina que o planejamento e a gestão urbana devem ser fruto de uma decisão democrática e participativa.
Dentre os agentes políticos envolvidos, foi o governador Helder Barbalho quem ganhou maior projeção desde a largada do processo de organização do evento, seja pela sua retórica (desconectada da realidade das ações estatais), seja pelos recursos (próprios e transferidos) que o estado do Pará vem alocando nestas polêmicas obras de infraestrutura.
Além de terem sido decididas nos gabinetes refrigerados dos tecnocratas estatais, essas obras visam, em grande medida, agradar e atrair os milhares de turistas que já estão circulando pela cidade neste momento. Trata-se de um autêntico exemplo de “City Marketing”, que trata a cidade como um bem a ser vendido àqueles que puderem pagar para usufruir de seus serviços, em detrimento da execução de obras e serviços que possam diminuir a desigualdade socioespacial.
Greenwashing
As obras de infraestrutura realizadas pelo governo do estado revelam fortemente um distanciamento entre o discurso “ambientalista” do seu gestor e as ações estatais, caracterizando nítida lavagem verde (no termo em inglês, greenwashing), entendida como uma estratégia discursiva e de marketing, que tenta vender a imagem de um produto, serviço (ou cidade) como melhor para o meio ambiente do que realmente é.
O estado do Pará afirma estar agindo de modo ambientalmente sustentável e em harmonia com os pressupostos da agenda climática. Na prática, o conteúdo discursivo do poder estatal não se sustenta se o compararmos às ações concretas desenvolvidas no plano da política urbana.
Na cidade que abrigará a “COP das Florestas”, conforme discurso do governador em rede social, existe uma nítida discrepância entre a retórica ambiental e as reais práticas governamentais, nas quais visualiza-se claramente a danosa “lavagem verde”.
Preparativos para a COP30
Duas obras viárias – a duplicação da Rua da Marinha e a construção da Avenida Liberdade – exemplificam bem essa prática: segundo o discurso oficial, elas objetivam diminuir os engarrafamentos em Belém e na sua região metropolitana, embora, na realidade, estimulem ainda mais a utilização do veículo privado (lógica de planejamento urbano que está na contramão daquilo que é praticada nas cidades mais desenvolvidas). Além disso, foram pensadas a partir de interesses empresariais ligados ao capital imobiliário.
A realização dessas obras é uma estratégia extremamente contraditória com a agenda global das mudanças do clima, porque resultarão na remoção de milhares de árvores, perda de biodiversidade e morte de centenas de animais silvestres que habitam ao longo do traçado das duas vias. Isso resultará, no futuro, no aumento da temperatura na região metropolitana e no planeta, devido à forte supressão da cobertura vegetal necessária à realização dos projetos rodoviários.
Na construção da futura Avenida Liberdade, além da expressiva supressão vegetal, seu traçado “rasga” uma Área de Proteção Ambiental (APA), pondo em sério risco o manancial de água que serve à comunidade quilombola Abacatal. Logo, a cidade da “COP das Florestas” apenas ratifica a greenwashing aplicada à política urbana em Belém.
Outro exemplo dessa lavagem verde da cidade é a construção dos parques lineares Nova Doca e da Avenida Tamandaré. Os locais dessas intervenções urbanísticas deixam claro que elas estão desconectadas de qualquer preocupação com a diminuição de desigualdades intraurbanas e bem distantes das diretrizes da agenda global do clima.
Os dois parques lineares estão localizados em bairros com infraestrutura consolidada e, portanto, com valor do solo urbano extremamente elevado e sujeito a forte especulação. O parque da Doca está localizado no bairro mais valorizado da cidade (Umarizal) e ambos se encontram em espaços da cidade habitados por famílias das classes A e B, conforme classificação do IBGE. Os novos parques são, portanto, mais uma ação concreta de “urban marketing” do que uma busca pela solução dos problemas da cidade.
Paradoxalmente, para os bairros e distritos majoritariamente favelizados (habitados por famílias vulnerabilizadas), nada ou muito pouco restou de ações urbanísticas para a COP 30. Mesmo quando são realizadas, as obras nessas regiões são intervenções orientadas pela lógica ortodoxa da infraestrutura cinza, desprezando-se as novas soluções urbanísticas baseadas na natureza que já são implementadas em muitas cidades no mundo. Ou seja, são obras que em nada contribuirão com a mitigação e a adaptação climática.
Belém, portanto, está sendo “vendida” para o restante do mundo para servir de palco para um evento nos qual líderes mundiais, provavelmente, não chegarão a um consenso sobre quais medidas urgentes devem ser adotadas para que sejam reduzidas as emissões de gases de efeito estufa, nem tampouco decidirão como se dará o financiamento climático aos países do sul global, que são os mais impactados pelas consequências das mudanças do clima no planeta.
Bruno Soeiro Vieira – Professor adjunto na Universidade Federal do Pará (UFPA).
Este texto foi republicado de The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original.
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