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As paredes gritam

O desaparecimento ou a substituição de um espaço são formas de contar uma história (Foto: Dage - Looking For Europe/Creative Commons)

E o que dizem quando falam? O que dizem quando calam?

POR BÁRBARA VETOS

“Ah, se essas paredes falassem…”. E, mesmo que não falem, “têm ouvidos”. Segundo esses ditados populares, nada passa despercebido. Assim como a floresta do Mayombe, romance de Pepetela, que, mais do que um elemento da natureza, é também personagem, a arquitetura sofre um processo de personificação semelhante, em que se torna testemunha de cenas do cotidiano e registros históricos. Conta histórias em um idioma próprio: em suas presenças e ausências.

Acima do concreto e dos tijolos ou soterrado sob eles, existem memórias e histórias. Do que foi, do que é, e do que pode vir a ser. Nada é por acaso. Entre construções erguidas e derrubadas, existe uma mensagem por trás. Se ainda está ali, por que está? E se não está mais, por que não?

Em uma entrevista concedida ao Le Monde Diplomatique Brasil, o autor palestino Atef Abu Saif descreve como funciona essa “guerra contra a memória”. “Todo prédio é uma memória. Cada casa não é só um salão, um quarto, uma cozinha e um banheiro. Cada casa é um armazenamento de memória. Quando você destrói a cidade e as casas, prédios, ruas, jardins e estátuas, você destrói todas as memórias que as pessoas construíram em volta desses lugares.” O objetivo é desconectar o espaço e o lugar das memórias de seus donos.

A arquitetura ocupa espaço no imaginário. Ao lembrar-se da casa em que passou toda a sua infância, você se apega aos detalhes estruturais da edificação ou às lembranças que constituiu? Boas ou ruins, são elas que compõem sua perspectiva.

Mais do que um fragmento no espaço-tempo, a memória traz à tona aromas, cores e sensações há muito camuflados pelo subconsciente. A arquitetura ganha vislumbres de afeto, beira à romantização. Tudo isso no que tange à memória individual.

Já a memória coletiva é constituída por constantes embates e disputas de narrativas. As escolhas não são tão casuais quanto imaginamos. Fazem parte de um projeto. Um jogo político e de interesses. Mas de quem?

Antigamente era melhor

Assim que assumiu a presidência dos Estados Unidos, Donald Trump exigiu que todos os novos edifícios públicos federais seguissem o “patrimônio arquitetônico tradicional e clássico”. Atitude semelhante à que tomou em 2020, no final de seu antigo mandato, e que havia sido revogada pelo ex-presidente Joe Biden. A ordem executiva Promovendo uma Bela Arquitetura Cívica Federal comunica intenções claras: “elevar e embelezar espaços públicos, enobrecendo os Estados Unidos e servindo ao povo norte-americano”. Make America Great Again. “Nós contra eles.” Nesse caso, brutalismo e desconstrutivismo versus arquitetura clássica greco-romana. Tudo isso virou até um slogan: Federal Architecture Beautiful Again.

Mas não é a primeira vez que discursos assim ganham força.

Partenon, templo grego construído no século 5 a.C., e o edifício da Suprema Corte, em Washington, Estados Unidos: 25 séculos de cópia não são suficientes. Para Trump, tudo deve continuar assim

Em 2018, o governo conservador britânico lançou uma comissão chamada Building Better, Building Beautiful (Construindo Melhor, Construindo Belo, em tradução livre) que buscava defender a “beleza” nas construções. Apesar de afirmar não ter a intenção de ditar o estilo arquitetônico, o relatório faz críticas ao que “deu errado no século 20”, enquanto elogia a construção de casas “belas” e “finas” principalmente durante os séculos 18 e 19.

Na Holanda, o político de extrema direita e presidente do partido Fórum pela Democracia (FvD) Thierry Baudet constantemente rejeita a modernidade e a descreve como “arquitetura feia, que está destruindo a sociedade holandesa”. “[Estamos] no meio dos escombros do que um dia foi a maior e mais bela civilização que o mundo já conheceu”, lamentou durante um discurso em 2019.

Na Alemanha, a narrativa se repete. Hans-Thomas Tillschneider, membro do partido de extrema direita Alternative für Deutschland (AfD), culpou o modernismo da escola de Bauhaus – referência em arte, arquitetura e design em todo o mundo – pelos problemas econômicos no estado da Saxônia-Anhalt. Em moção apresentada no parlamento regional em Magdeburg, em 2024, o deputado exigiu que “a glorificação da herança da Bauhaus” seja evitada por sua “proximidade com o comunismo”.

O resgate orquestrado da arquitetura tradicional é simbólico – e não vem desacompanhado. Pode parecer uma simples questão de gosto em um primeiro momento, mas há uma série de políticas retrógradas por trás. As definições arquitetônicas são só uma maneira de as representar visualmente.

Um ideal de mundo que olha para o futuro com as lentes do passado e busca nele um referencial. Flertar com a falsa nostalgia é um recurso comum – combiná-la ao medo, então, receita perfeita para a radicalização da extrema direita. O sentimento nostálgico, com seu caráter subjetivo e nada palpável, tem o poder de colorir épocas sombrias, individual e coletivamente.

Arquitetura da destruição

Desde o momento em que tomou o poder, Adolf Hitler falava sobre seus planos arquitetônicos. Seu objetivo era reconstruir a Alemanha em todos os sentidos.

É claro que seu interesse por arquitetura não era meramente uma preferência, mas uma ferramenta política e uma demonstração de poder. Grandiosidade, elevação da raça ariana, embelezamento – e a repulsa por tudo o que fugisse dessa estética.

No documentário Arquitetura da Destruição (1989), do diretor Peter Cohen, fica clara a importância dada à arte e à arquitetura durante o regime. “Deixar o mundo mais bonito era um dos princípios da ideologia nazista: há muito tempo, o mundo era lindo, mas a mistura racial e a degeneração o poluíram. Só o retorno aos ideais anteriores poderia fazer a humanidade prosperar novamente.”

Esse pensamento resultou em uma série de políticas e mudanças. Para os nazistas, os tempos modernos eram responsáveis pelo fenômeno da degeneração – algo a ser combatido e eliminado.

“A degeneração cultural era vista por muitos como uma ameaça real. Decadência era a palavra da moda para a burguesia nazista. Com suas perspectivas distorcidas, a arte de vanguarda era, para os nazistas, um augúrio da destruição que estava por vir. Para eles, o caos que viam nela era uma evidência visível de depravação espiritual e intelectual”, descreve o documentário.

Hitler trabalhou em uma série de esboços ao lado de Albert Speer, considerado seu arquiteto pessoal. Juntos, tinham o objetivo de projetar construções monumentais que fizessem jus ao Terceiro Reich e à nova Alemanha. As edificações serviam como afirmações de poder.

Durante o período, ambos resgataram estilos de arte e arquitetura próprios da Grécia e Roma antigas, apropriando-se de suas criações clássicas e deturpando-as, a fim de criar uma ideia de uma cultura superior, fruto de um passado ideal que merece ser conservado. “O ataque à arte moderna logo ganhou um caráter higiênico.”

Chefões que mantêm a pose

A estátua perdida de Zeus em Olímpia, Grécia, uma das sete maravilhas da humanidade e a estátua de Abraham Lincoln em Washington: mesmo estilo para deixar claro quem manda

Escombros do massacre

O desaparecimento ou a substituição de um espaço são formas de contar uma história. A definição do que merece ser retratado ou não vem por parte de quem “venceu” a disputa. E vem como imposição: a memória coletiva passa a ser esta.

No dia 2 de outubro de 1992, o maior complexo prisional da América Latina foi palco de uma chacina. No final do dia, a Penitenciária do Carandiru, localizada na Zona Norte de São Paulo, abrigava 111 mortes. A polícia alegou legítima defesa na tentativa de conter uma rebelião, mas os exames de balística, que mostram que 70% dos tiros foram disparados contra a cabeça e o tórax dos detentos – muitos deles pelas costas –, contam outra versão dos fatos.

Dez anos depois, a casa de detenção foi desativada e, logo em seguida, implodida. O pavilhão nove, um dos principais palcos do massacre, foi, coincidentemente, o primeiro a ser demolido, junto com os pavilhões seis e oito. Com algumas poucas estruturas conservadas, o complexo carcerário foi descaracterizado e o espaço deu lugar ao Parque da Juventude.

Apesar de popularmente conhecido por uma versão reduzida de seu nome, o local se chama Parque da Juventude Dom Paulo Evaristo Arns desde 2018. Talvez em uma tentativa tardia de resgatar o passado. Dom Paulo Evaristo Arns foi o 5º arcebispo e 3º cardeal da arquidiocese de São Paulo, conhecido por ser um defensor dos direitos humanos e por ter resistido à ditadura militar. Frequentemente, era chamado de “defensor de bandido”.

Após quase 33 anos, ninguém foi devidamente responsabilizado pelo massacre. Todos os casos de lesão corporal prescreveram e, de acordo com um relatório realizado pelo Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena (NECP) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), até 2022, entre os 75 processos localizados, apenas 25 famílias receberam a indenização. Essa é outra mensagem que fica. Cada uma dessas decisões é simbólica.

Hoje, temos dois opostos: um lugar que remete a dor, sofrimento, perda e morte versus um espaço arborizado, dedicado ao esporte, cultura e lazer. Uma realidade que se sobrepõe, anula a anterior, e ressignifica a memória coletiva. A ausência física determina a narrativa que deve ficar para trás – em um vazio que não incomoda o quanto deveria e que não promove reflexão e identificação.

Isso também é uma decisão política: esquecer o considerado esquecível. É o apagamento institucionalizado e a memória como resistência. Afinal, se não há memória, realmente existiu? Quem morreu mesmo? Se eu não vejo, será que importa?

A presença da ausência

Mas o visível e o invisível andam de mãos dadas – não importa quanto tempo passe. Em março, o Centro Universitário Maria Antonia, da Universidade de São Paulo (USP), recebeu a exposição Ausências Brasil, do fotógrafo argentino Gustavo Germano, em parceria com o Núcleo de
Preservação da Memória Política (NM).

Como o próprio nome já diz, as obras retratam a ausência de entes queridos – que desapareceram durante a ditadura militar. Fotografias antigas que mostravam famílias reunidas foram recriadas, dessa vez, com um integrante a menos. Em um dos casos, uma tela completamente vazia.

A exposição ressalta, de modo sensível, as presenças das ausências. Um sentimento quase palpável de que aquelas pessoas estão ali sem estar. E sobrevivem pelo olhar dos familiares que reivindicam sua memória.

O silêncio que a ausência provoca é barulhento. Dolorido. E diz muito sobre a posição que cada um de nós ocupa nesse jogo de disputas, que define lados e estabelece limites. Lidar com o apagamento é ter que encarar uma mão invisível tentando arrancar à força tudo o que você tem – fisicamente ou não.

Esse embate ideológico é descrito pelo jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano em O livro dos abraços (Editora L&PM): “A direita escolhe o passado porque prefere os mortos: mundo quieto, tempo quieto. […] Mentem-nos o passado como nos mentem o presente: mascaram a realidade”. Para Galeano, trata-se de uma tentativa de impor um projeto de memória hegemônico ao cidadão comum. “Assim, ele se resignará a viver uma vida que não é a sua, como se fosse a única possível.”

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Revista ESG Insights - Edição nº 2

Foto: Dage – Looking For Europe/Creative Commons
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