O aquecimento global é real. Mas não é o mesmo para todos, ainda que vivam lado a lado
POR BÁRBARA VETOS
Mais um recorde negativo. Outro. E mais outro. O planeta tem se tornado craque em atingir marcas que não são dignas de celebração – mas não sozinho, é claro. Os últimos dez anos foram os mais quentes já registrados na história, de acordo com o serviço climático europeu Copernicus. Em 2024, o Brasil atingiu as temperaturas mais altas registradas nos últimos 63 anos, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Os números, além de evidenciarem o agravamento das mudanças climáticas, também modificam a lógica da vida nas cidades.
Um estudo publicado em 2023 na revista PLOS Climate revelou que os 10% mais ricos dos norte-americanos são responsáveis por quase metade da poluição que leva ao aquecimento global. Enquanto isso, os que menos contribuíram para a situação atual do planeta são as maiores vítimas – muitos submetidos a um deslocamento forçado.
A crise climática global não é um tema isolado, mas, sim, uma questão atravessada por recortes socioeconômicos, raciais e geográficos. “As injustiças ambientais estão sempre permeadas pelo racismo. Esse racismo faz com que as periferias da cidade, que são majoritariamente povoadas por pessoas não brancas, sejam consideradas zonas de sacrifício”, aponta Céline Veríssimo, arquiteta e pesquisadora do grupo de Estudos Multidisciplinares em Urbanismos e Arquiteturas do Sul (Maloca) e do grupo de pesquisa ¡DALE! Decolonizar a América Latina e Seus Espaços.
De acordo com o estudo Racismo ambiental e justiça socioambiental nas cidades, do Instituto Pólis, os grupos mais ameaçados e que mais sofrem com as consequências do aumento de eventos climáticos extremos são pessoas negras, de baixa renda e que habitam regiões periféricas, sobretudo mães chefes de família.
O Brasil é cheio desses contrastes. Quem nunca viu aquela famosa foto do prédio luxuoso com piscinas localizado no bairro do Morumbi, em São Paulo, ao lado da comunidade do Paraisópolis? – embora, ironicamente, hoje esse edifício esteja em completo estado de abandono.
E se você soubesse que em um dos lados do muro que os separa está 8 °C mais quente? Foi o que relevou uma pesquisa da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade Presbiteriana Mackenzie, evidenciando como fatores socioeconômicos ampliam impactos climáticos nas cidades.
Em março deste ano, os termômetros também foram cruéis nas comunidades do Rio de Janeiro. Enquanto o restante da cidade registrava temperaturas de 44 °C – já bastante elevadas – no Complexo da Maré, na Zona Norte, a sensação térmica era de 60 °C.
Ester Carro, arquiteta, ativista e presidente do Instituto Fazendinhando, explica que muitas moradias da periferia não têm iluminação e ventilação mínima, o que potencializa o calor, além de apresentarem mofo e condições de insalubridade. Um levantamento realizado pela ONG Teto Brasil, em parceria com Insper e Diagonal, apontou que 69% dos domicílios em favelas apresentam problemas como frio ou calor excessivos, entrada de insetos e roedores e infiltração de umidade
ou água, resultando em riscos à saúde dos moradores.
“Essa desigualdade territorial e socioambiental se reflete em um impacto na saúde. Vemos um número alto de doenças, inclusive respiratórias, entre as pessoas que vivem na favela”, relata. Isso também se reflete na saúde mental. Um estudo publicado no Internacional Journal of Environmental Research and Public Health revelou que, quanto maior a exposição a áreas verdes urbanas, menor a necessidade de serviços de saúde mental.
Ester Carro conta que os moradores buscam estratégias que estão ao seu alcance para driblar alguns desses efeitos e resistir ao impacto das mudanças climáticas, mesmo que de forma improvisada. Muitos deles criam hortas nos quintais, nas vielas ou mesmo nos telhados, para ter algum tipo de contato com o verde. Outros pintam as residências de branco para amenizar a temperatura e tornar o ambiente mais fresco. “É uma luta constante pela sobrevivência.”
Racismo ambiental
O termo racismo ambiental surgiu na década de 1980 em meio a protestos contra o depósito de resíduos tóxicos no condado de Warren, na Carolina do Norte, Estados Unidos. O local era ocupado, em sua maioria, por pessoas negras. Em 1983, um relatório da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA, em inglês) apontou que, em oito estados do sul do país, 75% dos depósitos de rejeitos estavam concentrados em bairros com população predominantemente negra, apesar de o grupo representar apenas 20% dos habitantes da região.
“A questão do racismo está associada a um tripé de dominação de poder. Existe uma minoria da população mundial que precisa que a grande maioria viva de forma subalternizada”, diz Veríssimo. “Isso não acontece só com os humanos, mas também com a exploração da natureza.”
45 milhões
de brasileiros vivem em habitações precárias
Fonte: IBGE, 2024
Dados do Censo 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelam que sete em cada dez brasileiros que vivem em moradias precárias são pretos, pardos ou indígenas. Além disso, a proporção de pessoas pretas, pardas ou indígenas da Região Norte que vivem sem banheiro é maior que a média nacional. A população parda também é a que mais sofre com a privação do direito à água encanada, e as cidades brasileiras com menores índices de coleta de lixo estão localizadas na Amazônia Legal. A pesquisa O acesso ao verde e a resiliência climática nas escolas das capitais brasileiras, do Instituto Alana, Fiquem Sabendo e MapBiomas, também mostra que 60% dos alunos de escolas localizadas em áreas de risco são negros.
“Nós vivemos a modernidade da colonialidade, em que estamos sob uma linha abissal que separa a zona do ser e a zona do não ser – aqueles que são humanos e os que são menos humanos”, explica Veríssimo. Segundo a pesquisadora, isso fica claro na lógica do desenvolvimento das cidades, em que as regiões centrais concentram os serviços e garantem o acesso a cada um deles, enquanto a periferia carece de direitos básicos que possibilitem uma vida digna.
Arquitetura social e seus desafios
A arquitetura e o urbanismo social vêm na contramão desse cenário, na tentativa de ressignificar o conceito de lar, trazendo segurança e dignidade para as periferias das cidades. Hoje, cerca de 45 milhões de brasileiros vivem em habitações precárias – sem banheiro, com pouco espaço e feitas com material improvisado, segundo levantamento do IBGE de 2024. “Estamos falando de moradias que foram construídas sem o auxílio técnico necessário. Muitas delas não têm pilares ou vigas e estão sendo sustentadas apenas pela parede do vizinho”, explica Ester Carro.
O urbanismo social atua sob a perspectiva da renovação de áreas em situação de vulnerabilidade nas cidades, dialogando diretamente com as necessidades dos moradores e o desenvolvimento urbano sustentável. Para a profissional, muito mais do que uma série de reformas, a arquitetura é uma ferramenta de transformação social.
É por meio do Instituto Fazendinhando que ela vem atuando em comunidades por todo o Estado de São Paulo, trazendo impactos múltiplos na vida dessas pessoas. “Cada vez mais, precisamos de projetos de urbanização que respeitem e dialoguem com a cultura e com as dinâmicas estabelecidas naquele espaço.”
Com as reformas, seja diretamente na casa dos moradores, seja nas áreas comuns das regiões periféricas, o território é fortalecido e é possível evitar que ocorram processos de remoção e gentrificação. “A comunidade precisa ser protagonista nisso. O urbanismo não pode ser elitista”, defende Carro.
Apesar de o tema ter avançado nos últimos anos no país, ela aponta que há muitos desafios a serem superados, como a falta de políticas de incentivo a quem deseja atuar com urbanismo social, a dificuldade e a burocracia no diálogo com o poder público e a baixa aplicabilidade das leis existentes, o que faz com que muitas pessoas sequer saibam seus direitos. Segundo a Lei Federal nº 11.888, de 2008, também conhecida como Lei da ATHIS (Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social), famílias de baixa renda têm direito à assistência técnica gratuita de arquitetos e engenheiros, para projetos e construção de habitação de interesse social.
O espaço como elemento vivo
Em sua atuação, Carro conta que a primeira etapa consiste em fazer todo o levantamento técnico e, logo em seguida, dialogar com os moradores sobre suas necessidades e seus desejos. É por meio da escuta ativa que as solicitações podem ser efetivamente atendidas, de modo a compreender as dinâmicas dos territórios. “Nosso trabalho é menos impositivo e mais colaborativo, feito de baixo para cima. Começamos com a comunidade e depois vamos integrando e articulando com outros atores da sociedade civil, iniciativa privada, instituições, escolas, e o poder público”, detalha.
Há espaços que têm uma importância histórica para os moradores, seja porque eles mesmos construíram, seja porque fazem parte da vida deles de alguma forma. “Com a arquitetura social, nós podemos fortalecer isso por meio da melhora na estrutura. Conseguimos dizer para a sociedade e para o poder público que nós precisamos estar nesses lugares”, explica.
Ao engajar a comunidade, ela passa a se sentir pertencente a todo o processo e entende que também precisa cuidar daquele espaço. “Quando não escutamos essas pessoas e não permitimos que elas sonhem, o que se observa é que, por mais que haja investimento público, a área pode acabar degradada”, avalia.
Por outro lado, quando os moradores participam desde o início, a chance de sucesso da intervenção a longo prazo é maior. Com isso, é possível pensar em espaços de capacitação, cultura e áreas verdes que durarão por gerações e não exigem alta manutenção, já que os projetos são pensados com base no design circular, a partir do reaproveitamento de materiais de boa qualidade.
“O impacto disso não é só para a comunidade que está recebendo a obra, mas para toda a sociedade, diminuindo, inclusive, o impacto das mudanças climáticas nas nossas cidades”, defende a ativista. Ao diminuir o desperdício, também é possível evitar que esses materiais sejam descartados em aterros. “A sustentabilidade é a base para essa transformação.”
Autoestima e pertencimento
Tudo muda quando os moradores veem tomar forma algo que haviam idealizado. Nos primeiros contatos, Carro conta que existe certa resistência, principalmente das mulheres. “Elas aparentam ser mais fechadas, desconfiadas. Falam pouco com a gente até entenderem o que viemos fazer.”
Muitas das intervenções podem parecer simples, mas fazem a diferença na forma como essas pessoas se enxergam e interagem com o mundo. Tudo isso mexe com a autoestima dos moradores e gera empoderamento.
“Eu tenho o sonho de ter uma parede verde na minha casa, um sofá, um espelho, e um espaço para fazermos as refeições todos juntos”, foi um dos pedidos de uma mãe solo que Carro ouviu durante sua atuação. “Essa mãe passou a ser mais feliz e ter orgulho de onde mora. Começou a querer receber pessoas em sua casa.”
A moradia digna é a base de tudo. O ponto de partida para mudar a vida das pessoas também em outros aspectos. “Não estamos falando apenas sobre a estrutura física das casas, mas tudo o que elas impedem as famílias de alcançar dentro das próprias cidades, como educação, saúde, lazer”, analisa Carro. “Todas essas coisas estão interligadas.”

Revista ESG Insights nº 2 – Cidades e urbanismo
Distopia urbana – Crise climática expõe a fragilidade do nosso modelo de urbanização
A cidade e o bem-estar – Qualidade de vida não deve ficar apenas no mundo das ideias
Menos carros, mais vida urbana – Conheça iniciativas que transformam a vidas nas cidades
A 15 minutos da qualidade de vida – Para Carlos Moreno, idealizador do conceito da cidade de 15 minutos, é preciso otimizar o tempo de deslocamento na cidade, a fim de garantir acesso aos direitos da população
As paredes gritam – E o que dizem quando falam? O que dizem quando calam?
Espaços mais conectados e humanos – Smart cities dialogam com soluções múltiplas e não apenas com tecnologia
Inteligência para as cidades – O que precisamos hoje não é apenas de cidades “inteligentes”, mas de inteligência para as cidades
Comunidades no modo sobrevivência – O aquecimento global é real. Mas não é o mesmo para todos, ainda que vivam lado a lado
As cidades e seus pulmões verdes – Parques urbanos, mesmo os menores, trazem resultados na melhoria da qualidade do ar das metrópoles
Deu ruim – Excessos elitistas desacreditam as concessões de praças e parques em São Paulo. Dá para resolver?
Como as empresas podem ajudar – Parcerias público-privadas são um atalho para a inovação urbana mais rápida e efetiva

