Demanda da União Europeia por veículos elétricos pode levar ao desmatamento de 118 mil hectares em países fornecedores de minerais críticos
POR FERNANDA WENZEL
A União Europeia (UE) promete se tornar neutra em carbono até 2050, o que significa que o bloco não poderá emitir uma única tonelada de dióxido de carbono a mais do que é capaz de absorver. Para atingir essa meta, os europeus precisam atualizar seu sistema de transporte, que responde por 75% de suas emissões, com o aumento massivo da frota de carros elétricos.
A produção de minérios pra atender essa demanda, no entanto, pode resultar em novas emissões de carbono. Segundo um relatório encomendado pelas organizações europeias Fern e Rainforest Foundation Norway, e produzido pelo Institute for Ecological Economics e pelo WU Vienna University of Economics and Business, 118 mil hectares de florestas em todo o mundo podem ser destruídos até 2050 para atender às aspirações verdes da UE. O número equivale a 1,8% do total de desmatamento registrado em florestas tropicais em 2024, de acordo com a Global Forest Watch.
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“Como algumas atividades de mineração desmatam grandes áreas florestais, elas contribuem significativamente para o aumento dos níveis de CO2 atmosférico, exacerbando, assim, as mudanças climáticas”, afirma o relatório.
Segundo o estudo, o Brasil concentraria 11,7% deste desmatamento, o equivalente a 13.900 hectares. O dado corresponde a apenas 3,6% do total de florestas derrubadas na Mata Atlântica e na Amazônia em 2024, segundo o instituto de pesquisa Imazon. A área real, no entanto, deve ser muito maior, já que os especialistas consideraram apenas o desmatamento direto causado pelas minas. Não está incluído nos números o desmatamento indireto provocado pelo crescimento populacional e pela expansão da infraestrutura, como a construção de estradas de acesso para máquinas pesadas — historicamente seguido pela expansão da agricultura.
O tamanho do impacto varia dependendo do tipo de bateria que os carros vão usar. A chamada NMC 811, por exemplo, é a bateria mais comum no mercado europeu e requer quantidades significativas de níquel e cobalto. A LFP, por outro lado, não requer esses recursos e tem menores impactos de desmatamento. Em todos os cenários analisados pelo relatório, no entanto, o Brasil estaria no topo do ranking dos países mais desmatados, ao lado da Indonésia.
A lista de minerais de transição, também conhecidos como críticos ou estratégicos, inclui dezenas de substâncias como cobre, alumínio, manganês, nióbio, prata, níquel, cobalto, terras raras e lítio. Eles são componentes essenciais não apenas para veículos elétricos, mas também para outras energias de baixo carbono, como solar e eólica.
Os impactos desse novo boom mineral não se limitam ao desmatamento, incluindo perda de biodiversidade, contaminação de fontes de água e violações dos direitos de comunidades tradicionais. Em 2024, a organização internacional de direitos humanos Business & Human Rights Resource Centre rastreou 156 alegações de abuso em projetos de minerais críticos em todo o mundo, incluindo danos ambientais, mortes relacionadas ao trabalho e ataques contra defensores ambientais.
“Impactos nos direitos humanos frequentemente ocorrem em conjunto com impactos ambientais”, diz Caroline Avan, chefe de Transição Justa e Recursos Naturais do Business & Human Rights Resource Centre. “Os dois estão conectados”.
Ameaças e oportunidades
Apesar de abrigar a maior floresta tropical do mundo e ser um dos países mais afetados segundo o relatório, o governo brasileiro está celebrando a corrida por minerais estratégicos como uma grande oportunidade econômica. A Agência Internacional de Energia estima que a demanda por minerais críticos passará de US$ 230 bilhões em 2023 para US$ 1 trilhão até 2030, e o Brasil ocupa uma posição estratégica nesse mercado.
De acordo com o guia para investidores internacionais do Brasil, o país possui 12,3% das reservas mundiais de níquel, 26,4% de grafite, 19% de terras raras, 4,9% de lítio e 94% de nióbio, além de importantes reservas de vanádio, manganês e bauxita.
Empresários dizem que o país também pode se beneficiar da guerra comercial entre os Estados Unidos e a China, que tem quase um monopólio sobre as cadeias de suprimentos de minerais estratégicos. Em novembro de 2024, o presidente chinês Xi Jinping e o presidente Lula assinaram acordos para impulsionar a exploração mineral no Brasil. Em março, o governo de Donald Trump confirmou uma parceria com o governo federal para conduzir pesquisas conjuntas para mapear minerais estratégicos em quatro estados brasileiros.
“Não damos conta das solicitações que recebemos, tanto de empresas quanto de países”, disse Raul Jungmann, presidente do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), que representa as empresas de mineração do Brasil, em entrevista ao jornal O Globo. Jungmann disse que investidores da Austrália, Nova Zelândia, Reino Unido, Canadá e Estados Unidos procuraram oportunidades de negócios. “Há um enorme apetite.”
Empresas já começaram a marcar presença no território nacional. De acordo com um levantamento do site InfoAmazonia, até maio de 2024 havia 5.046 pedidos de mineração de minerais críticos em toda a Amazônia, cobrindo 26 milhões de hectares, uma área quase do tamanho do Equador. Destes pedidos, 1.205 estão localizados a até 10 quilômetros de territórios indígenas. Em 390 casos, os pedidos se sobrepunham às terras tradicionais, o que é proibido pela Constituição.
“Documentos do próprio governo vem mostrando que há uma incidência muito grande desses minerais em áreas protegidas da Amazônia”, diz Marta Salomon, analista sênior do Instituto Talanoa, um think-tank comprometido com a política climática. “E há uma tremenda pressão no Congresso para liberar a mineração em terras indígenas”, afirma, referindo-se a um grupo de trabalho criado pelo Senado para discutir a abertura de terras indígenas a projetos de mineração.
Apoio do governo
Empresas de mineração encontraram no presidente Lula um importante aliado para seus planos de expansão. Em 2025, o governo federal investiu R$ 54,3 milhões no mapeamento de minerais estratégicos, de acordo com o projeto Política por Inteiro do Talanoa. Outros R$ 281 milhões devem ser investidos até 2026.
O BNDES também entrou na corrida por minerais de transição com dois fundos, totalizando R$ 5 bilhões. Em agosto de 2024, o banco aprovou um empréstimo de R$ 486,7 milhões para a Sigma, uma empresa canadense de lítio que opera em Minas Gerais. Em maio, a empresa foi acusada por um grupo de pesquisadores de cometer sérias violações de direitos humanos e irregularidades no processo de licenciamento ambiental.
Outra iniciativa governamental, a Plataforma Brasil de Investimentos Climáticos e para a Transformação Ecológica (BIP), investiu US$ 1,8 bilhão em três empresas que trabalham com terras raras e níquel. “Através do nosso potencial em minerais críticos e terras raras, o nosso país está envidando todos os esforços para aumentar o papel de liderar uma transição energética global justa, inclusiva e equilibrada”, escreveu o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, em um relatório oficial sobre o potencial do Brasil no setor. Segundo o ministério, o Brasil tem 48 projetos de minerais críticos para a transição energética, 20 dos quais estão em operação e 28 na fase pré-operacional.
Marta Salomon reconhece que a transição energética é iminente e que o Brasil tem um papel crucial como fornecedor de minerais críticos. No entanto, ela afirma que o governo brasileiro deveria estabelecer diretrizes socioambientais claras para as empresas antes de lhes fornecer incentivos políticos e financeiros. “Ainda não temos uma política clara nem para transição energética nem para minerais críticos”, diz Salomon.
O Ministério de Minas e Energia vem prometendo um Plano Nacional de Transição Energética desde 2023, mas o documento ainda não foi concluído. Em um e-mail à Mongabay, o ministério afirmou que o plano deve ser lançado no segundo semestre de 2025 e que a lei brasileira “já prevê salvaguardas socioambientais relacionadas à exploração mineral”. O ministério também vem prometendo uma política nacional sobre minerais críticos desde meados de 2024, que deve ser divulgada até o final de 2025.
O diretor de assuntos minerários do Ibram, Julio Nery, também respondeu ao e-mail da Mongabay dizendo: “a legislação atual já traz estas salvaguardas ambientais necessárias para os projetos de mineração”.
O governo Lula também oferece apoio político às empresas de mineração. Em fevereiro, o presidente foi a uma instalação da Vale em Parauapebas, no Pará, participar de uma cerimônia para celebrar a expansão da produção de cobre e ferro da empresa. “O Estado brasileiro, que também tem interesse estratégico que a Vale cresça, que o país cresça, e que os estados que vocês [Vale] explorem, minério de ferro, cobre ou qualquer outro, cresçam”, disse o presidente no evento.
“Há uma confluência de políticas de endosso [aos projetos de minerais críticos] tanto no aspecto simbólico quanto no aspecto prático”, diz Maurício Angelo, fundador do portal de jornalismo Observatório da Mineração e doutorando em Ciência Ambiental pela Universidade de São Paulo (USP). “Isso incluiu incentivos, subsídios, programas, políticas, facilitação da captação de recursos, investimentos, tudo isso perseguido em conjunto com as grandes empresas.”
A Vale é a maior empresa de mineração do Brasil e tem um histórico de violações de direitos humanos e ambientais, incluindo duas das maiores tragédias da história mundial da mineração, ocorridas em Minas Gerais. O rompimento de uma barragem na cidade de Mariana em 2015 — considerado o maior desastre ambiental do Brasil — deixou 19 mortos e causou enorme poluição ao Rio Doce. Quatro anos depois, outra barragem rompeu em Brumadinho, matando 272 pessoas e contaminando o Rio Paraopeba.
Agora, a Vale quer liderar os investimentos do país em minerais de transição. O plano é dobrar a produção de cobre até 2035 e aumentar a produção de níquel em 42% a partir de 2023, consolidando sua posição como a maior produtora mundial deste minério. Grande parte do níquel deve vir da expansão do complexo mineral Onça Puma, no Pará, onde, por anos, o povo Xikrin tem denunciado a contaminação do Rio Cateté pelas atividades de mineração da empresa.
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Uma pesquisa da Universidade Federal do Pará analisou 720 indígenas e encontrou altos níveis de metais pesados em 98,5% deles, levando o Ministério Público Federal a abrir um processo contra a companhia.
De acordo com Angelo, o apoio de Lula às práticas da Vale mostra uma “contaminação violenta” das políticas públicas por interesses privados. “O Ministério de Minas e Energia, a Agência Nacional de Mineração, e mesmo Lula e Geraldo Alckmin são grandes entusiastas e apoiadores do setor mineral”, ele diz. “Os diferentes governos estão servindo apenas aos interesses privados mesmo se tratando de um bem, no caso da mineração, que pertence à sociedade.”
Novas tecnologias, velhas práticas
Ganhar o apoio das comunidades locais por meio de ofertas financeiras, da cooptação de lideranças ou, em última instância, pelo uso da violência, são estratégias comuns de empresas de mineração no Brasil e no exterior, diz Angelo. “O que mudou foi apenas a narrativa das empresas, que agora dizem que são sustentáveis, que são essenciais para a transição energética”, disse ele. “Mas a prática das empresas segue a mesma.”
A lista de projetos controversos envolvendo minerais de transição no Brasil inclui a maior produtora de bauxita do país, a Mineração Rio do Norte, operando dentro da Floresta Nacional de Saracá-Taquera, no norte do Pará. Comunidades ribeirinhas e quilombolas acusam a empresa de poluir o rio, desmatar a floresta e afastar a caça. Em Barcarena, onde a bauxita é processada pela empresa norueguesa Norsk Hydro, rios foram repetidamente contaminados por rejeitos de mineração.
No Amazonas, o grupo indígena Waimiri-Atroari tem denunciado os impactos da maior mina de estanho do Brasil desde a década de 1970. Em novembro, o chamado projeto de mineração Taboca foi comprado pela estatal chinesa China Nonferrous Mining Corporation. Também no Amazonas, a canadense Brazil Potash quer instalar uma mina de potássio em uma área tradicionalmente ocupada pelo povo Mura. O Ministério Público Federal está contestando o processo de licenciamento ambiental do projeto.
“As empresas estão usando a transição energética para explorar áreas indígenas que, segundo vários estudos, prestam serviços ecossistêmicos e climáticos inestimáveis para o Brasil e o mundo”, diz Angelo. “Isso não vai resolver a crise climática”, acrescenta Avan, do Business & Human Rights Resource Centre. “Não precisamos escolher entre proteger os direitos humanos ou resolver a crise climática porque a crise climática é uma crise de direitos humanos de qualquer forma.”
Este texto foi republicado de Mongabay sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original.
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