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População mais pobre é a maior vítima da crise ambiental

Tragédia ambiental no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG) (Foto: Rogério Alves/TV Senado (Wikimedia Commons))

Eventos climáticos extremos e crimes ambientais atingem com mais força as populações negras e de baixa renda

POR NATÁLIA RANGEL

Embora seja um desafio global, o impacto negativo dos eventos extremos relacionados às mudanças climáticas e dos crimes ambientais recai, principalmente, sobre as populações empobrecidas. Um estudo do Instituto Pólis, Racismo ambiental e justiça socioambiental nas cidades, realizado em 2022 nas cidades de São Paulo, Recife e Belém, mostrou que as pessoas negras e de baixa renda são maioria nas áreas menos dotadas de infraestrutura e serviços ambientais básicos e que são as mais afetadas pelos desastres e crimes ambientais no país.

“Durante muito tempo, o racismo foi tirado de cena na questão ambiental. O racismo ambiental fala sobre como essas injustiças ambientais privam a população negra e os povos indígenas de humanidade e direitos”, explica o geógrafo Diosmar Santana Filho, pesquisador da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor do livro A geopolítica do Estado e o território quilombola no século 21.

Um exame rápido de eventos recentes evidencia isso: 84,5% das vítimas imediatas do rompimento da barragem em Mariana (MG) eram negras. O desastre do ano de 2015 foi de responsabilidade da mineradora Samarco, que poluiu a bacia do Rio Doce com rejeitos de mineração, destruiu casas e matou 19 pessoas. A lama tóxica contaminou as águas do rio, matando peixes e comprometendo a subsistência de comunidades ribeirinhas e do povo indígena krenak.

Em 2019, no rompimento da barragem em Brumadinho, também em Minas Gerais, 58,8% dos 259 mortos e 70,3% dos 11 desaparecidos se declaravam como não brancos e tinham renda média abaixo de 2 salários mínimos. O desastre, responsabilidade da mineradora Vale, trouxe igualmente injustiça ambiental para a população da região, incluindo o povo pataxó.

80% de resgatados de trabalho análogo à escravidão se declaram negros ou pardos

Além disso, em 2023, foram resgatadas 2.575 pessoas de situação de trabalho análoga à escravidão, de acordo com dados do Ministério do Trabalho. Desse número, 80% se declaravam como pretos ou pardos e 58% eram naturais do Nordeste.

E mais: os locais com os maiores índices de atividades predadoras do meio ambiente estão nas regiões periféricas e marginalizadas do território brasileiro. Sendo as pessoas negras e pobres as mais impactadas nas situações de risco hidrológico e geológico nas cidades.

Por que falar em racismo ambiental?

Enquanto a população mais protegida economicamente assiste pela TV às tragédias e crimes ambientais, o segmento mais pobre sucumbe a eles de diferentes formas. Seja por falta de saneamento básico, rede de esgoto, coleta de lixo e acesso à água potável, seja por exclusão das políticas públicas ou por serem moradores de áreas de risco, como encostas ou locais afetados de forma sistemática por enchentes, desmatamento, poluição do ar, queimadas e contaminação da água.

Nesse sentido, o resgate do conceito de racismo ambiental é um avanço que ajuda a modular o discurso e compreender melhor a realidade. Afinal, não há como preservar o meio ambiente sem cuidar das populações que vivem nele. É o que defende Santana Filho, que também integra a plataforma Iyaleta, de pesquisas, ciências e humanidades, de Salvador.

O pesquisador baiano traz alguns exemplos de processos malconduzidos ou totalmente negligenciados que ajudaram a acentuar as desigualdades e as suas graves consequências sociais e ambientais.

“Você vê a história de Alagados, em Salvador. Chegamos a ter 100 mil famílias vivendo em palafitas na península de Itapagipe, entre as décadas de 1940 e 1980. Na década de 1970, a região ficou conhecida no mundo todo por abrigar a maior favela de palafitas das Américas. As últimas foram extintas em 2015/2016, dentro do Minha Casa Minha Vida”, conta Santana Filho, referindo-se ao programa de moradias do governo federal que vinha, desde o início dos anos 2000, substituindo as palafitas por casas de alvenaria.

Outra situação apontada por ele é a falta de mediação no uso da água. “A política de recursos hídricos tem um princípio: na escassez, o abastecimento humano e animal é prioritário. Isso é uma coisa que o Brasil já não cumpre. Nem a Agência Nacional de Água tem esse controle de forma precisa. E se hoje você tem muita gente que se desloca do semiárido para o Sudeste em busca de trabalho, isso é resultante da não aplicação dessa lei”, sustenta Santana Filho.

Ele traz outro exemplo de racismo ambiental. “Grandes empresas de água mineral que divulgam redução na emissão de carbono e adoção de transporte elétrico, por exemplo, muitas vezes não cuidam do seu passivo, que são as bacias hidrográficas”, critica. A água usada pela indústria vai afetar, principalmente, áreas de comunidades negras nas grandes cidades, ou em áreas rurais.

“Eles (os industriais) impactam a região e seus moradores com o não direito de acesso ao bem. Reduzindo acesso à água ou à pesca de comunidades quilombolas, ribeirinhas e povos indígenas. Assim opera o racismo ambiental. É um processo que tem a ver com a forma como a gente olha a sociedade”, analisa o pesquisador.

Para o geógrafo, o cenário de desigualdades brasileiro só foi possível devido ao seu ordenamento territorial. “E o território brasileiro se ordenou pelo racismo. Sempre digo que não temos tecnologias desenvolvidas entre o século 16 e o século 19. Porque a tecnologia que movia o país ainda era o corpo de pessoas negras, escravizadas como motor industrial da nação.”

IPCC: 3,6 bilhões de pessoas vivem em situações de risco ambiental no mundo

As desigualdades profundamente enraizadas no Brasil e em outros países do mundo são um poderoso obstáculo aos avanços. Segundo o estudo Mudança climática 2022: impactos, adaptação e vulnerabilidade, divulgado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), aproximadamente 3,3 a 3,6 bilhões de pessoas vivem hoje em contextos muito vulneráveis às alterações do clima.

De acordo com as pesquisadoras Emma Garnett (Universidade de Oxford) e Charlotte A. Kukowsky (Universidade de Cambridge), em artigo publicado na Nature Climate Change, 1% dos mais ricos do planeta geram uma quantidade de poluentes no ar atmosférico equivalente ao que é emitido por 66% dos não ricos.

Ou seja, uma mudança só será realmente sentida se partir dos setores mais abastados e que têm maior impacto nas mudanças climáticas que ocorrem no planeta.

Foto: Rogério Alves/TV Senado (Wikimedia Commons)
Tragédia ambiental no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG)

 

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