A rede elétrica nacional oferece uma vantagem estratégica ainda não plenamente reconhecida nas diretrizes atuais
POR CARLOS DRIEMEIER, EDVALDO DE MORAIS, GIOVANA TONON
O mundo necessita urgentemente de soluções para redução de suas emissões de gases de efeito estufa que causam as mudanças climáticas. O hidrogênio verde é elemento-chave para setores de difícil descarbonização, como siderurgia, fertilizantes, indústria química e combustíveis para transporte de longa distância. Esses setores requerem grandes volumes de energia na forma química e atualmente são dependentes de combustíveis fósseis.
O hidrogênio verde é produzido pela eletrólise da água, um processo que usa eletricidade de fontes renováveis (como solar, eólica ou hidrelétrica) para quebrar a molécula de água em hidrogênio e oxigênio. Tornar essa tecnologia viável em larga escala e a baixo custo ainda é um desafio. O Brasil tem uma infraestrutura única para alavancar essa indústria e liderar esse vetor da transição energética. Além disso, a Lei do hidrogênio de baixa emissão de carbono (de agosto de 2024) juntamente com os seus futuros desdobramentos infralegais estão formalizando o posicionamento do Brasil nesse campo.
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Singularidade brasileira no cenário do hidrogênio verde
A produção em larga escala de hidrogênio verde demanda eletricidade renovável barata e abundante. Como o Brasil se posiciona em uma comparação global? Se olharmos para os atlas de energia solar e energia eólica, percebemos que o Brasil possui recursos muito bons, porém não extraordinários.
Esse cenário muda quando avaliamos as redes elétricas de diferentes países. Nesse quesito, o Brasil lidera, apresentando o maior percentual de energia renovável entre as maiores economias do mundo. Considerando sua extensão espacial e percentual de energia renovável (cerca de 90%), o Sistema Interligado Nacional (SIN) do Brasil é único no mundo. O SIN conecta o país de norte a sul, aproveita as complementaridades entre as energias hidrelétrica, solar, eólica e biomassa e utiliza os reservatórios hídricos para armazenar energia e trazer flexibilidade ao sistema. Resultado de muito trabalho e inventividade, o SIN é a singularidade brasileira para integração do hidrogênio verde.
Conexão à rede e integridade de carbono
As redes elétricas são reconhecidas por promoverem sinergias. Geram eficiências econômicas ao aproveitar as complementaridades entre os múltiplos geradores e consumidores e ao compartilhar as infraestruturas da rede. É por essa vantagem econômica que conectamos à rede nossas casas, escritórios e indústrias. Com a produção de hidrogênio verde não é diferente. Há vantagens em conectá-lo à rede.
Mas a conexão traz desafios. Dado que a mesma rede também conecta as termelétricas movidas a combustíveis fósseis, como garantir que a eletricidade é renovável? Essa garantia tem sido avaliada sob a denominação de integridade de carbono, que visa assegurar que a conexão do hidrogênio verde não induz emissões de carbono em outros pontos da rede elétrica. Emissões induzidas comprometeriam seu atributo verde. Trata-se de um tópico atual de pesquisa, e nosso grupo no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) analisou o caso brasileiro em um recente artigo científico publicado no periódico Applied Energy.
Requisitos de fornecimento de eletricidade
A integridade de carbono tem sido endereçada por meio de requisitos de fornecimento de eletricidade. Vem se difundindo internacionalmente a abordagem da União Europeia, que consiste em lastrear o hidrogênio verde em capacidade adicional de energia renovável. Para isso, um trio de requisitos foi concebido:
- Adicionalidade, que busca garantir que a energia elétrica seja fornecida por uma nova capacidade instalada de energia renovável.
- Entregabilidade, que busca garantir que essa capacidade adicional esteja conectada com a produção de hidrogênio.
- Casamento temporal, que busca implementar a simultaneidade (na prática, casamento em escala horária) entre a geração renovável adicional e seu consumo na produção de hidrogênio. Assim, empregando instrumentos contratuais e regulatórios para associar o hidrogênio verde à adição de capacidade renovável, ficaria assegurada a sua integridade de carbono.
A conceitualização difundida internacionalmente enfatiza o adicional (novos empreendimentos) e ignora as sinergias oferecidas pelas infraestruturas de baixo carbono já existentes. O diferencial de redes como a brasileira não é considerado nessa abordagem que orienta a produção de hidrogênio verde e, sob essa perspectiva de integridade de carbono, o diferencial brasileiro desaparece.
Fóssil residual, mas ainda presente
Se, por um lado, é inadequada a ênfase estrita no adicional, por outro lado, também é problemática a ausência total de requisitos. Vejamos dois cenários. Se uma planta de hidrogênio verde operar no início de uma noite de pouco vento, de onde virá a energia? Se o sistema despachar eletricidade fóssil para atender a demanda, fica comprometida a integridade de carbono. O outro cenário é o de escassez hídrica. O sistema despachará energia fóssil para garantir a segurança da rede. A produção de hidrogênio nessa circunstância poderá ser considerada 100% verde?
O sistema brasileiro tem cerca de 90% de energia renovável. Nossos riscos de indução de emissões de carbono na rede são muito menores no comparativo internacional. No entanto, embora menores, os riscos ainda estão presentes. A integridade de carbono precisa constar nas discussões do hidrogênio verde no Brasil. Precisamos de uma conceitualização da integridade de carbono que seja adequada às nossas circunstâncias.
Há trabalho a fazer
A integridade de carbono baseada nos requisitos de adicionalidade, entregabilidade e simultaneidade tem limitações que vêm sendo expostas pela pesquisa. Portanto, há espaço para abordagens alternativas, principalmente para redes como a brasileira, que já alcançaram estágios avançados de descarbonização. Uma construção alternativa de requisitos precisaria contemplar:
- Clareza para contribuir ao desenvolvimento da indústria do hidrogênio verde.
- Eficácia na garantia da integridade de carbono.
- Valorização da infraestrutura de baixo carbono já existente.
- Aplicabilidade e reconhecimento internacional.
Se o Brasil formalizar sua visão de integridade de carbono, terá as credenciais para ser protagonista nessa discussão. Por outro lado, se optar por ignorar o tema, ficará na dependência de conceitos importados, sob risco de desperdiçar seu diferencial.
Carlos E. Driemeier – Doutor em Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador sênior no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM).
Edvaldo Rodrigo de Morais – Doutor em Engenharia Química pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador sênior no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM).
Giovana Chinaglia Tonon – Mestra em Engenharia Química pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e especialista em Desenvolvimento Tecnológico no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM).
Este texto foi republicado de The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original.
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