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Futuro de refugiados é incerto em meio a desemprego e informalidade

André Naddeo, diretor-executivo da ONG Planeta de Todos (Foto: Divulgação)

Cenário reflete a desinformação e preconceito e levam à falta de inclusão, afirma André Naddeo da ONG Planeta de Todos

POR BÁRBARA VETOS

“Sua mãe está aqui com a gente esta noite, Marwan, nesta praia fria e enluarada, entre os bebês que choram e as mulheres que lamentam em línguas que não falamos. Afegãos, somalis, iraquianos, eritreus e sírios. Todos nós ansiosos pelo nascer do sol, todos nós com medo desse mesmo momento. Todos nós à procura de um lar.

Ouvi dizer que somos indesejados. Que não somos bem-vindos. Que deveríamos levar nosso infortúnio a outra parte.”

O trecho, retirado do livro A memória do mar, de Khaled Hosseini, foi inspirado na história de Alan Kurdi. Talvez o nome não seja familiar em um primeiro momento, mas a foto de seu pequeno corpo estirado na areia da praia na Turquia com certeza é. O refugiado sírio de 3 anos que tentava atravessar o Mar Mediterrâneo com sua família se tornou um símbolo da crise migratória de 2015 e trouxe à tona discussões que permanecem atuais.

Reconstruir a vida em um novo país, com idiomas, crenças e cultura completamente diferentes, já é uma missão difícil para quem escolhe fazê-lo. Para quem não tem alternativa senão desbravar o desconhecido, os percalços são ainda maiores. Essa diferença, que separa imigrantes de refugiados, dita, muitas vezes, a perspectiva de futuro de cada um – ou a falta dela.

Um dos principais desafios para quem chega ao novo destino é a dificuldade em encontrar trabalho. De acordo com um estudo de 2023 da ONG Visão Mundial, 67,4% dos imigrantes que vivem no Brasil (incluindo refugiados e os que chegam por vontade própria) não estão inseridos no mercado. Entre os que já estão empregados, 85,3% afirmam que não estão trabalhando no mesmo setor de experiência de seu país natal. Outros 16,3% atuam de maneira informal, segundo dados da Agência da ONU para Refugiados (Acnur) do mesmo ano.

Parte do obstáculo de inserção no mercado formal vem por parte das empresas. Um levantamento feito em 2017 pela Universidade de Brasília (UnB) com 400 profissionais de recursos humanos mostrou que 91% deles admitem não reconhecer os procedimentos para a contratação de profissionais refugiados.

Além disso, 63% pensam que a contratação de um refugiado é mais complexa do que de um brasileiro e 48% acreditam que seus colegas não contratam refugiados por medo de auditorias do Ministério do Trabalho.

O cenário reflete a desinformação e o preconceito que ainda fazem parte da mentalidade de muitos recrutadores e que impactam diretamente na adaptação e inserção de refugiados no país. A fim de aprofundar o assunto, André Naddeo, diretor-executivo da ONG Planeta de Todos – organização que provê assistência social a refugiados no Brasil –, comenta sobre pontos positivos em relação a outros países, discussões e desafios que precisam ser superados, e qual deve ser o papel das empresas nesse processo. Confira alguns trechos da entrevista.

ESG Insights – Quais os principais desafios que refugiados enfrentam no país e em quais pontos o Brasil se destaca em relação aos demais?

André Naddeo – Existem muitas questões que permeiam o processo de acolhimento de refugiados e imigrantes no Brasil. Na Europa, por exemplo, quando eles chegam na Grécia ou em países como Itália, Reino Unido, França, eles chegam de maneira ilegal e têm que se submeter a rotas inseguras, movimentando toda uma máfia do tráfico de pessoas. Esse assunto é pouco falado, mas eles têm um poderio semelhante ao tráfico de drogas e armas.

Muitos países também não permitem o trabalho legal e, por não terem uma documentação, os refugiados acabam recorrendo à informalidade para ter um dinheiro no bolso.

“O limbo social é você não saber se você pertence àquele local, se vai conseguir construir raízes ou aprender o idioma”

O Brasil, em contrapartida, tem um ponto interessante: você consegue tirar o CPF, a carteira de trabalho e você tem mais possibilidades. Ao aprender português, essas pessoas conseguem vislumbrar um futuro. O Brasil oferece essa solidez.

O que demora, e é o principal entrave do país, é o reconhecimento dentro do status de refugiado. É um processo que gira em torno de dois anos, às vezes mais ou menos. A partir do momento em que você é reconhecido como um refugiado, você já consegue contar o tempo de quatro anos para o processo de naturalização.

Quando você faz a solicitação, você não tem nenhuma certeza se vai ser aceito, você vai precisar reunir uma série de documentos, provar sua história, e às vezes precisa até de uma assessoria jurídica. É um processo muito moroso, que gera uma ansiedade e produz o que a gente chama de limbo social.

O limbo social é você não saber se você pertence àquele local, se vai conseguir construir raízes ou aprender o idioma. Esse processo entre ser aceito e conseguir os documentos gera muita ansiedade e cria um vácuo em relação à adaptação, integração cultural e, especialmente, ao mercado de trabalho. Até porque essas pessoas lidam com uma questão de estresse pós-traumático muito forte. Isso também gera uma ansiedade por uma renda fixa.

Mas os direitos de um imigrante/refugiado no Brasil são praticamente os mesmos de um brasileiro. Você consegue fazer um contrato CLT, consegue pagar seus impostos, pagar seu INSS… Com duas diferenças importantes: não é possível votar, nem participar de concursos públicos.

Tendo em vista que somos um país feito de imigrantes, não vejo qualquer tipo de impedimento. Por que o imigrante/refugiado não pode fazer parte da sociedade de maneira efetiva, concorrendo a cargos públicos ou mesmo sendo candidato em eleições? Nesse ponto o Brasil ainda não avançou.

ESG Insights – Como se dá a questão do mercado de trabalho no Brasil?

André Naddeo – O Brasil, especialmente em função das emergências migratórias, abriu as portas do país. Muita gente começou a chegar, mas não existia um plano de acolhimento real e factível.

“Foi um negócio bem à moda brasileira, tentando resolver o problema quando ele já está acontecendo”

Não houve um planejamento para fazer a mediação cultural, para saber onde essas pessoas seriam levadas, quais empresas tinha intenção de contratar. Foi um negócio bem à moda brasileira, tentando resolver o problema quando ele já está acontecendo. O Brasil ainda não tem muita experiência em relação aos programas de acolhimento.

Já existem muitas organizações que fazem isso, mas é preciso você criar os alicerces para que essas pessoas consigam entrar no mercado de trabalho. Tudo isso a fim de vislumbrar uma inclusão plena, estabelecendo raízes e reconhecendo o Brasil como sua própria nação.

A integração cultural, social e laboral é um processo de médio, até de longo prazo. Ninguém aprende a falar um idioma do nada. Tendo em vista que apenas 5% da população fala inglês aqui, faz-se necessária a fluência do português no mercado de trabalho.

Se não houver um planejamento, a pessoa vai acabar ficando ali em cargos de, no máximo, dois salários-mínimos e vai estagnar. Vai trabalhar para caramba, não vai ter tempo de aprender a língua, e vai acabar sendo até um pouco excluída.

ESG Insights – Levando em consideração que o tema de diversidade e inclusão vem sendo tão discutido pelas empresas, você acredita que elas estão preparadas para lidar com a questão dos refugiados?

André Naddeo – As empresas ainda não estão preparadas. Não existem programas suficientes de aprendizado da língua, por exemplo. Muitos refugiados têm que buscar cursos ou professores em caráter particular. É muito mais uma questão de resiliência deles do que um plano de acolhimento pré-estabelecido que oferece essas ferramentas sociais que eles tanto precisam.

“A partir do momento em que a empresa levanta a bandeira da diversidade, ela tem que realmente assumir esse papel, e não colocar apenas posts nas redes sociais”

O mercado de trabalho precisa se acostumar, precisa criar ferramentas e se preparar mais para poder receber os refugiados/imigrantes e fazer essa mediação. Ou seja, que as empresas tenham, pelo menos, um pessoal para receber e falar numa outra língua enquanto esses imigrantes não falam português. Também seria interessante que houvesse alguns núcleos de integração, porque é importante que essas pessoas se sintam confortáveis.

Se você as deixar de canto, em uma função aleatória, vai ser difícil traduzir as capacidades em aspectos práticos e efetivos. A partir do momento em que a empresa levanta a bandeira da diversidade, ela tem que realmente assumir esse papel, e não colocar apenas posts nas redes sociais. Quando você assume essa responsabilidade, você tem que ir até o fim.

Por muitas vezes, também faltam iniciativas por parte das empresas de consultarem pessoas que têm mais experiência em contexto migratório. Não necessariamente ONGs, mas há vários profissionais capacitados para falar sobre o assunto.

ESG Insights – O que as empresas podem fazer acolher essas pessoas e absorver esses talentos?

André Naddeo – Se eu sou um gerente de RH, eu vou aproveitar o fato de que imigrantes de várias nacionalidades estão no Brasil e vou colocar os meus funcionários para aprender a falar espanhol, inglês, francês. Todo mundo diz: “Hoje, quem não tem inglês no currículo fica para trás no mercado de trabalho”, então por que as empresas não aproveitam isso para capacitar sua própria mão de obra, dando oportunidade profissional para essas pessoas?

“O Brasil é um país que não entende a importância da mediação cultural”

Além dos laços culturais, você também pode estreitar os laços comerciais. Uma pessoa de outra nacionalidade pode ser uma conectora para que a empresa se torne uma multinacional e para que consiga fazer mediações culturais com empresas de outros países.

O Brasil é um país que não entende a importância da mediação cultural. Os refugiados são tão bons em fazer isso, é uma coisa tão natural para eles, que isso também poderia ser aproveitado pelas empresas brasileiras, para que estabelecessem outros tipos de acordo e relações.

Qualquer companhia diversa e multidisciplinar vai estar na frente de outras. Só o fato de você trabalhar em um ambiente assim, multicultural, já resulta em um ganho pessoal para o funcionário e estrutural para a empresa.

ESG Insights – Quais benefícios você enxerga na contratação de refugiados? O que eles podem oferecer no quesito competências e experiências de vida?

André Naddeo – São pessoas muito qualificadas, que podem trazer valores e ideias bem diferentes. O Brasil, como um país de DNA imigrante, poderia aproveitar isso de uma maneira mais orgânica. Essas ondas migratórias nunca vão deixar de acontecer e é interessante aproveitar essa mão de obra.

“Uma pessoa que é refugiada já traz para a empresa dois elementos que são fundamentais em qualquer emprego: resiliência e coragem”

Povos se movimentam ao redor do mundo por diversas razões há séculos, mas algumas pessoas ainda têm isso mal-entendido, como se fosse uma ameaça, ou como se eles fossem “roubar nossos empregos”, mas isso não é verdade. É mais do que comprovado que a mão de obra imigrante é uma força motriz para qualquer economia.

Embora a recepção deles seja boa no Brasil, eles ainda são muito subaproveitados enquanto mão de obra. Uma pessoa que é refugiada já traz para a empresa dois elementos que são fundamentais em qualquer emprego: resiliência e coragem.

Para você recomeçar do zero, você precisa ter uma resiliência enorme, muita coragem para chegar em um país totalmente diferente. São elementos de recursos humanos muito poderosos na seleção de um candidato.

OCDE: refugiados geram mais ganhos do que gastos aos países

Um estudo feito pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostrou que, entre os 25 países analisados – sendo 22 deles europeus, além dos Estados Unidos, Canadá e Austrália – no período de 2006 a 2018, o impacto fiscal dos imigrantes foi positivo em todos eles. O valor gerado em receita foi superior aos gastos públicos destinados a esses grupos.

O retorno veio por meio do pagamento de impostos e contribuições sociais diretas, impostos indiretos, contribuições sociais do trabalhador e outros, e resultou em um acúmulo de US$ 2,5 trilhões. Já as despesas com saúde, educação, envelhecimento, e outros serviços de proteção social e públicos gerais foram de US$ 2 trilhões.

Um levantamento anterior a esse, intitulado Macroeconomic evidence suggests that asylum seekers are not a “burden” for Western European countries (Evidências macroeconómicas sugerem que os requerentes de asilo não são um “fardo” para os países da Europa Ocidental, em tradução livre), realizado pela Escola de Economia de Paris, já havia constatado isso ao longo de 30 anos – de 1985 e 2015.

Foto: Divulgação
André Naddeo, diretor-executivo da ONG Planeta de Todos

 

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