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Mercado de tecnologia traz barreiras invisíveis para as mulheres

Desafios enfrentados pelo público feminino na área (Foto: CC0 Public Domain)

Empreendedoras premiadas em concurso de startups falam sobre os desafios que enfrentam no setor de TI

POR BÁRBARA VETOS

Um departamento inteiro de uma empresa repleto de homens pode ser um ambiente hostil para muitas mulheres. Uma sala de aula que siga os mesmos padrões, mais ainda. A cientista da computação Ana Cabral, do Rio de Janeiro, convive com essa sensação desde muito cedo. Certa vez, na faculdade, ao tentar tirar uma dúvida com um professor, foi recebida com a seguinte resposta: “Desde que as mulheres resolveram abandonar o fogão, a gente tem que lidar com esse tipo de pergunta dentro da sala de aula”. A colocação foi acompanhada de uma sinfonia de risadas da maioria masculina da classe.

Hoje, Ana Cabral é CEO da Baruk, uma startup especializada em automação inteligente, e recentemente foi uma das três premiadas no desafio Women in Tech: The Next Gen, da Meta Ventures, que faz parte da empresa responsável por Facebook, Instagram e WhatsApp. E, se a humilhação feita pelo professor a título de “piada” já ficou no passado, Cabral continuou enfrentando percalços ao longo de toda sua trajetória como empreendedora na área de tecnologia – que tem sido marcada, também, por questões raciais.

“Eu me sentia o tempo todo desafiada, sempre tentando provar para as pessoas que eu era capaz. Como mulher negra, eu precisava ser ainda melhor.” Cabral conta que colocou como meta nunca mais vivenciar cenas como essa, tão corriqueiras desde seus 15 anos, quando começou a se interessar pelo universo tecnológico. “Eu queria ser uma das alunas mais aplicadas e conseguir desenvolver projetos relevantes, para que eu pudesse me posicionar e vencer.”

Dados refletem barreiras de gênero no setor de tecnologia

De acordo com o estudo Woman in Technology, da PageGroup, menos de 20% dos cargos na área de tecnologia são ocupados por mulheres no Brasil. Na América Latina, menos de 30% têm presença feminina em cargos de liderança no setor.

Nos cursos de tecnologia da informação (TI), as mulheres só ocupam 16,5% das vagas. Os dados do Mapa do Ensino Superior 2023 mostram que os números destoam quando comparados com as demais áreas. Em média, a participação feminina é de 60,7%.

Para Marcio Flôres, diretor de Corporate Venture & Open Innovation da Meta Ventures, e coordenador do Women in Tech: The Next Gen, o Brasil enfrenta uma falha estrutural que ainda não foi revertida. Formado em ciências da computação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ele conta que sua turma era composta por 72 duas pessoas: 65 homens e apenas sete mulheres. “Isso na década de 1990, mas se olharmos para as tendências dos anos anteriores, vamos ver como isso também era uma questão. Existia uma divisão de profissões consideradas ‘de homem’ e ‘de mulher’.”

“Sabemos que existem mulheres muito potentes na área de tecnologia, mas o sistema e o ambiente inibem esses potenciais”, reforça Cabral.

Desafios enfrentados por mulheres empreendedoras na área de tecnologia

De acordo com uma pesquisa realizada pelo Global Entrepreneurship Monitor 2020 (GEM) em parceria com o Sebrae, o Brasil é o sétimo país no mundo com o maior número de mulheres empreendedoras, com cerca de 30 milhões – em uma conta que inclui pequenos e médios negócios de todos os tipos. Mas os números são bem mais modestos quando se considera o universo das empresas inovadoras de base tecnológica. Dados do Mapeamento do Ecossistema Brasileiro de Startups 2021, da Abstartups, revelam que apenas 17% das startups no Brasil possuem mulheres como fundadoras.

A empresária Ana Ferronato, COO da NetWord Agro e primeira colocada no desafio da Meta Ventures, conta que o fato de ter sido uma das únicas mulheres da turma fez com que ela fosse se preparando para o que enfrentaria nos anos seguintes em sua carreira. Atuar em um mercado majoritariamente masculino como o agronegócio também foi algo que influenciou sua postura como empreendedora.

Quando fundou a empresa com seu sócio, seu maior desafio não era só colocar em prática os anos de pesquisa e validar seu produto, mas lidar com um conflito interno fruto da desigualdade de gênero. “Eu tinha que provar para os outros o porquê eu estava na liderança de uma equipe e qual era o meu papel nos negócios.”

Marcio Flôres acredita que, embora não haja uma restrição explícita no acesso feminino aos eventos e concursos de empreendedorismo, existe uma barreira invisível que faz com que as próprias executivas não se sintam tão à vontade. Segundo ele, elas acabam ficando frustradas com esse tipo de dinâmica em que estão sempre cercadas de homens e têm dificuldade em enxergar propósito em eventos que não tem foco na participação de mulheres, por exemplo. “Quando você cria uma iniciativa como esta, elas se identificam e entendem que estamos buscando por perfis como os delas.”

Mariana Moreno, COO da Bits e segunda colocada do Women in Tech: The Next Gen, guarda de forma vívida uma memória que envolve preconceito. Moreno relata que no início de uma reunião com um cliente, o rapaz disse que não queria falar com ela, mas sim, com o dono. Ela argumentou que era dona também, mas ele insistiu que queria falar com o outro sócio – um homem. Quando percebeu o equívoco, mudou o tom e a postura.

Durante apresentações da empresa, a COO da Bits conta que é muito comum que seja interrompida por outro homem. “Já quando meu sócio está falando, ele é respeitado. Talvez não seja um preconceito tão explicito, mas é uma realidade.” É algo que costuma ser chamado de manterrupting, neologismo surgido a partir das palavras man e interrupting para indicar a interrupção desnecessária de uma mulher por um homem.

Entre os diversos desafios enfrentados por elas, a empresária revela que uma de suas maiores preocupações no momento é com a gestação. Grávida de seis meses, tem receio de como sua carreira será transformada com a vinda de um bebê. “A gente tem um intervalo de continuidade no trabalho e isso traz um sentimento de culpa. Será que estou deixando minha carreira ou meu filho de lado?” Apesar de ainda não ter dado à luz, ela conta já se sente bastante pressionada e em conflito para alcançar esse equilíbrio.

Sororidade: mulheres que abrem portas para outras empreendedoras

Além do espírito empreendedor e a meta de desenvolver soluções tecnológicas para o setor, elas também compartilham o sonho de levar a sororidade para o mercado de tecnologia – com cada vez mais mulheres ocupando cargos de liderança.

As adversidades vividas ao longo de suas formações e carreiras as levaram ao encontro de outras mulheres. Para Moreno, foi em um momento em que se sentiu frustrada e diminuída no ambiente de trabalho que começou a se conectar com outras empreendedoras. “Todas já passaram por isso e vão ter uma história para contar, você vai ver que não é a única. Acaba que elas te dão força e dicas do que fazer e por onde seguir.”

Para sua surpresa, Cabral encontrou suporte no ecossistema do empreendedorismo. “São pessoas que me abrem portas, me deixam falar, me apresentam para figuras relevantes. O que posso fazer é aproveitar as oportunidades e fazer a diferença.”  Seu objetivo é que, daqui a 10 ou 15 anos, possa se orgulhar por ter ajudado a revolucionar o setor, com uma maior participação de mulheres.

Os incentivos para se manter ativa na área vêm de casa. Desde criança, sempre contou com o apoio de sua família para persistir e realizar o sonho de empreender em tecnologia. Ela conta que sua mãe repetia como um mantra: “O que você está querendo fazer é grande e você vai encontrar muita resistência. Se desistir, você perdeu. Saiba que tem muito potencial para fazer acontecer”.

Ferronato também faz questão de se envolver em iniciativas voltadas para mulheres, como o Women in Tech, porque entende que é um jeito de trazer o poder para a mão de líderes femininas. Isso se reflete nas ações de sua empresa, que tem o compromisso de atrair outras mulheres seja para compor a equipe, seja como cliente.

Nesse processo de se entender e se posicionar profissionalmente, Ferronato percebeu quais lutas valiam a pena, como ela mesmo diz. “Ainda há uma dificuldade para as mulheres empreenderem, mas eu penso mais estrategicamente sobre onde vale a pena eu me encaixar e estar presente”, explica. Ela passou a tomar a frente da empresa em eventos de inovação e tecnologia, como forma de abrir caminho para outras.

Mariana Moreno diz que é uma ótima oportunidade de ver a quantidade de mulheres geniais que existem, criando soluções incríveis e inovadoras. “Às vezes olhamos para esse mercado preenchido por homens e ficamos sem uma referência, sem ter em quem se espelhar.”

Mulheres trazem diversidade e inovação para as empresas

Segundo um estudo feito pela consultoria McKinsey & Company, as empresas que contam com mais mulheres na liderança têm 25% mais chances de lucrar acima da média. O número aumenta para 36% quando é contemplada também a diversidade étnica.

Flôres defende que inovação e diversidade andam lado a lado. “Você não inova com pessoas que têm a mesmo viés, educação e forma de ver o mundo.” Seguindo essa linha de raciocínio, Moreno acredita que as mulheres têm um papel fundamental e agregador no quesito diversidade. “Temos experiências de vida e bagagens muito diferentes. Isso influencia nosso olhar para as temáticas”, argumenta.

Ferronato diz que a impressão que ela tem é que, com essa maioria de homens em todos os segmentos da tecnologia, os pensamentos acabam sendo mais tradicionais. “A gente traz a inovação e esse olhar mais humano, independente do setor, até mesmo para a discussão de questões ESG.” Ela entende que o caminho é valorizar e colocar cada vez mais mulheres nesses espaços. “Eu vejo claramente que escalamos o potencial do negócio quando estamos engajadas nas empresas e nos projetos”, complementa.

Foto: CC0 Public Domain
Desafios enfrentados pelo público feminino na área

 

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