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Uso de câmeras corporais nas empresas levanta questões trabalhistas e de transparência

Manifestação pelo assassinato de João Alberto Silveira Freitas por funcionários do Carrefour, em 2020 (Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado (Wikimedia Commons))

Adoção da medida pelo Carrefour promove discussão sobre os riscos e o papel ESG que as companhias precisam estar atentas

POR BÁRBARA VETOS

O Grupo Carrefour conclui projeto de instalação de 4 mil câmeras corporais em suas lojas espalhadas por todo o país. A medida envolve fiscais internos e seguranças externos terceirizados. O objetivo é proporcionar uma maior transparência às interações entre clientes e funcionários, diminuindo casos de desentendimento e combatendo um histórico de violência nas unidades (leia resumo no final deste texto).

A discussão sobre o uso desse tipo de tecnologia tem ganhado mais atenção no Brasil, principalmente com a recente implementação das câmeras corporais por parte dos agentes de segurança pública do país. Segundo informações do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), são mais de 30 mil equipamentos em uso por policiais e guardas municipais.

No setor privado, a justificativa é a mesma: enfrentamento às situações de violência.

“Esse tema toca em questões sensíveis de vigilância, proteção de dados e privacidade. As câmeras corporais, seja no setor público, seja no setor privado, despertam certa ansiedade”, avalia Pedro Monteiro, pesquisador e coordenador do setor de vigilância do Laboratório de Políticas Públicas e Internet (Lapin). “É um assunto que precisa ser colocado na pauta central.”

Diferenças no uso da tecnologia

Por mais que tratem do mesmo assunto, existem diferenças na adoção das câmeras corporais nos setores público e privado. “A finalidade do uso de câmeras na segurança pública é auxiliar os processos de investigação e garantir a lei por meio da fiscalização da atividade policial”, explica Monteiro.

Por outro lado, a utilização no setor privado chama a atenção para os riscos que pode oferecer, principalmente no quesito transparência. “Nós temos menos possibilidade de fiscalizar como esses dados estão sendo armazenados e quem está tendo acesso”, argumenta o coordenador.

No entanto, Márcia Ferreira, gerente do Núcleo de Privacidade e Proteção de Dados na Nelson Wilians Advogados, afirma que a lei permite que o Carrefour adote essas medidas com a finalidade de segurança dos clientes e funcionários e que, se aplicadas adequadamente, não há problemas em relação à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Outra diferença se dá entre as câmeras de segurança que gravam todo o ambiente, com as quais as pessoas já estão mais acostumadas, e as câmeras corporais. A advogada relembra que as primeiras gravam a imagem de forma mais ampla, principalmente em um mercado, em que elas ficam no alto e normalmente não têm a capacidade de captar áudio. “Já as câmeras corporais gravam mais interações. Muitas das vezes, vão gravar a conversa de um funcionário com outro ou com um familiar.”

Monteiro explica que se trata de um registro um pouco mais íntimo e invasivo, pois são imagens mais próximas, que acabam coletando não só os dados pessoais dos clientes, mas dos funcionários que transitam com os equipamentos.

Riscos da implementação de câmeras corporais

A instalação desse tipo de recurso acaba levantando algumas dúvidas e receios sobre os possíveis riscos que isso traz. A advogada e o coordenador do Lapin defendem que a palavra-chave é transparência. Ela reforça que nada disso é proibido, mas que é preciso se atentar a uma série de princípios, para que continue dentro da lei. E que, se um dia a finalidade for mudada, isso precisa ser informado.

Uma das questões abordadas por ambos os especialistas é o desconforto que as câmeras podem causar nos funcionários se forem utilizadas como uma extensão da vigilância. “Isso pode levar a constrangimentos e à potencialização do abuso e controle sobre o trabalhador naquele espaço”, aponta Monteiro.

Além de uma maior fiscalização laboral, o pesquisador questiona um possível uso para definição de perfis dos clientes, analisando os hábitos de consumo daquele público.

Marcelo Tardin, diretor de Transformação do Grupo Carrefour Brasil, afirma que todo o processo de implantação das câmeras foi feito de acordo com a LGPD e que não há nenhum tipo de invasão de privacidade por parte dos trabalhadores. Quando o funcionário está em descanso, por exemplo, sai para o almoço ou vai ao banheiro, ele retira a câmera. “Nós garantimos que estamos avaliando a atividade profissional e nada além disso. O objetivo é realmente garantir a aderência aos protocolos.”

Outro ponto levantado pelos especialistas é o risco de vazamento dessas imagens, como já aconteceu, muitas vezes, com gravações feitas pelas câmeras policiais. No entanto, o diretor alega que existe todo um treinamento e senhas de acesso para visualizar o conteúdo gravado, e que só a área de tecnologia pode fazer isso, para que não haja risco de adulteração ou eliminação de imagens.

“O sistema é fechado, não conseguimos compartilhar ou manipular esses dados. Eu não tenho como parar gravações, mudar datas, deletar”, diz. Ele explica que todos que utilizam esse recurso tecnológico têm que assinar um termo de compromisso, garantindo o respeito aos protocolos e à LGPD.

Segundo Tardin, o funcionário não tem nenhum controle sobre a câmera. A partir do momento em que ele retira o equipamento da estação, a gravação é iniciada. Não existe um botão de acionamento capaz de começar ou parar o registro.

Implementação de câmeras requer transparência nas empresas

“O Carrefour precisa ter políticas claras sobre essa questão, para mostrar que não quer nada a mais com isso”, enfatiza Ferreira. Ela defende que os titulares dos dados, clientes ou funcionários, saibam de tudo o que está sendo feito e que isso deve ser sempre reforçado: para que, por que, quem vai armazenar, por quanto tempo aquilo pode ser acessado.

No momento, a comunicação sobre as novas práticas da empresa tem sido feita internamente e por meio de entrevistas e notas à imprensa.

O diretor de Transformação do Carrefour explica que a maioria dos incidentes registrados pelas câmeras são fruto de um comportamento eventualmente ríspido de um funcionário com um cliente, e que as imagens já têm sido utilizadas tanto em treinamentos quanto para a avaliação de situações reais. “Essa medida já reduziu em mais de 30% os incidentes, o que mostra que estamos no caminho certo, de garantir uma cultura de respeito e sem discriminação.”

Situações de violência e formas de combater o racismo

O coordenador do Lapin afirma que deve existir um processo de conscientização constante nas empresas, que faça parte de uma política maior de enfrentamento ao racismo e a outros tipos de violência. “O fato de os funcionários estarem cometendo atos de discriminação mostra como isso é um problema sistêmico. E problemas sistêmicos não são resolvidos com soluções fáceis [câmeras corporais].”

A advogada completa dizendo que não é necessário recorrer somente a treinamentos específicos. Muitas vezes, a criação de um cartaz, um slogan diferente, o superior se mostrando engajado com a causa, já são formas de conscientizar. “Precisa estar sempre vivo na cabeça das pessoas, porque o ser humano tende a esquecer, se acostumar e relaxar.”

Tardin explica que, para isso, a empresa tem investido em medidas complementares à implementação das câmeras, como as trilhas de treinamento. A primeira delas, intitulada “Eu pratico respeito”, fala sobre os protocolos de atendimento com respeito e cordialidade, inteligência emocional e comunicação não violenta.

As instruções se aplicam a todos os funcionários do Grupo Carrefour, inclusive a terceiros, e não é possível começar a trabalhar sem passar por esse processo.

O tema do segundo treinamento é sobre letramento racial – numa relação mais direta com problemas de abuso que foram registrados em algumas lojas do Carrefour nos últimos anos. Ele aborda questões como racismo e viés inconsciente. “A ideia é garantir que todos os colaboradores entendam que esse é um tema da sociedade brasileira e estejam equipados para agir e criar um ambiente antirracista e antidiscriminatório”, reforça o diretor. O não cumprimento das políticas será avaliado e poderá ter consequências que vão de multa a rompimento de contrato. 

“A câmera corporal é um misto de sentimentos, mas, tendo em vista o histórico do Carrefour, utilizar as câmeras com essa finalidade é uma coisa boa. Inibe uma conversa com um colega, mas também inibe de cometer um crime”, argumenta Ferreira. “É triste ter que chegar a esse ponto, mas são medidas necessárias.”

No entanto, os especialistas consideram que houve uma certa demora na adoção dessas práticas. “Eu acho que é sempre tarde depois que a violência já aconteceu. Ainda mais no Brasil, um país que tem um histórico racista e de uma pós-abolição que reafirmou todos os processos de violência contra pessoas negras”, reflete Monteiro. “Mas é importante que soluções sejam procuradas.”

A gerente de Privacidade e Proteção de Dados entende que a rede de supermercados teve sua credibilidade e relação de confiança com o cliente muito afetadas após casos de violência, e que a segurança e questões ESG devem ser sempre preocupações das empresas.

Histórico de violência nos últimos anos

Com casos de maior ou menor repercussão, mercados do Carrefour espalhados por todo o Brasil foram palco de situações de violência envolvendo, majoritariamente, pessoas negras. Relembre alguns casos: 

  • Em 2020, João Alberto Silveira Freitas, homem negro de 40 anos, foi agredido por um policial militar e por um segurança terceirizado do supermercado após discussões. A vítima foi espancada até a morte. O caso ocorreu na véspera do Dia da Consciência Negra, na zona norte de Porto Alegre.
  • Em outubro de 2018, dois funcionários do Carrefour agrediram Luís Carlos Gomes, homem negro com deficiência física, após ter aberto uma lata de cerveja dentro da loja, a qual afirmou que pagaria. Ele foi perseguido e encurralado em um banheiro da unidade de São Bernardo do Campo (SP), onde recebeu socos, chutes, e um mata-leão.
  • Em dezembro de 2018, um cachorro abandonado que circulava pelo estacionamento de uma unidade da loja em Osasco (SP) morreu após ser envenenado e espancado por um funcionário.
  • Em 2009, seguranças de uma unidade em Osasco agrediram Januário Alves de Santana, homem negro de 39 anos, acusado de tentar roubar um carro no estacionamento. O automóvel pertencia a ele. A vítima sofreu fraturas na face, perdeu um dente e teve que passar por uma cirurgia.
Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado (Wikimedia Commons)
Manifestação pelo assassinato de João Alberto Silveira Freitas por funcionários do Carrefour, em 2020

 

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